segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O fim da farsa Laudo da Unicamp prova em vídeo que a PM atirou primeiro no massacre de Eldorado dos Carajás


Mário Simas Filho e Alan Rodrigues (fotos), do Pará
Miguel Pereira
A PM afirma que os manifestantes atiraram primeiro e que os policiais apenas reagiram em legítima defesa. Esta versão prevaleceu até a quinta-feira 14, quando o Laboratório de Fonética Forense e Processamento de Imagens da Unicamp concluiu a perícia da única fita de vídeo gravada com cenas do conflito. Com equipamentos e programas especiais, os peritos Ricardo Molina de Figueiredo e Donato Pasqual Júnior conseguiram desdobrar cada segundo da fita em 33 frames ou cenas. O resultado foi a descoberta de imagens inéditas. O laudo, obtido com exclusividade por ISTOÉ, identifica cenas impossíveis de se ver numa exibição comum e prova que a tese de legítima defesa da PM é uma farsa. Os policiais atiraram primeiro. E mais: antes do conflito, dois manifestantes foram feridos e pelo menos um sem-terra foi morto pelas costas depois da desobstrução da estrada.
Até a divulgação do laudo, a farsa prevaleceu. Tanto que, em agosto do ano passado, os três primeiros oficiais da PM levados a julgamento foram absolvidos, entre eles o coronel Mario Colares Pantoja, principal responsável pela operação. O Ministério Público recorreu e em maio o Tribunal de Justiça do Pará anulou a sentença. Um novo julgamento deverá ser marcado ainda este ano. Se o laudo da Unicamp for encarado com seriedade, será difícil manter a impunidade. A perícia feita na fita VHS gravada pelo cinegrafista Osvaldo Araújo revela exatamente o que aconteceu no dia 17 de abril de 1996 em Eldorado do Carajás.
O promotor Nascimento, com a perícia feita na fita
O confronto – Ao contrário do que afirmaram os policiais, os sem-terra não partiram para cima da PM com o objetivo de atacar a tropa. Logo no começo da fita, numa das cenas do sétimo segundo da gravação, vê-se a polícia disparar armas de fogo e lançar bombas de efeito moral, próximo a um caminhão boiadeiro. Os sem-terra fogem em direção ao acampamento na beira da estrada, desobstruindo a pista. O desdobramento de imagens feito após um minuto e cinco segundos de gravação mostra claramente um sem-terra ferido ao lado da roda traseira direita do caminhão, antes do início do embate entre os manifestantes e os policiais. “Nós só queríamos socorrer o companheiro, mas a PM fez um cerco e começou a confusão”, lembra a sem-terra Maria Abadia Barbosa, que recebeu um tiro na parte de trás da coxa esquerda. O rapaz ferido era Amâncio Rodrigues, conhecido como surdinho. Dias depois, o resultado do exame cadavérico realizado no Instituto Médico Legal de Marabá atestou que ele morreu vítima de três tiros. “Antes do confronto propriamente dito, o surdinho estava caído perto do caminhão”, confirma o cinegrafista Araújo.
A sem-terra Maria Abadia relatou essa cena na Justiça. Como ela não aparecia na fita de Araújo, o seu depoimento não foi considerado no julgamento dos três oficiais da PM. O laudo da Unicamp mostra, no entanto, que a sem-terra estava no conflito. Ela aparece mostrando o furo de bala na parte anterior da coxa esquerda. Numa outra cena, socorre seu filho, Júlio César, ferido de raspão na cabeça. “Foram minutos que quero esquecer”, diz Maria Abadia, hoje com 61 anos e sofrendo com um tumor no seio. “Mas, se for preciso, volto ao tribunal e repito tudo o que vi.” Na última semana, durante uma conversa com a reportagem de ISTOÉ, o cinegrafista Araújo lembrou-se que além de Amâncio havia um outro sem-terra ferido antes do embate. “Ele se arrastava em uma vala à esquerda do caminhão”, disse. O laudo confirma. Com dois minutos e sete segundos, é possível observar, na gravação desdobrada pelos peritos, os sem-terra socorrendo o ferido.
Excelência no limbo
Roberto de Biasi/AE
Molina: “O laboratório não teve sua credibilidade arranhada”
O laudo da Unicamp sobre o massacre de Eldorado do Carajás reflete a importância das perícias feitas naquela universidade desde 1985, quando foi criado seu Departamento de Medicina Legal (DML). Na história recente do País, diversos episódios foram elucidados devido a laudos do departamento. O fato, porém, não é reconhecido pela própria universidade. Em dezembro passado, o DML foi extinto, por causa de divergências internas e de sua suposta baixa produtividade. Na prática, a crise começou com críticas a laudos feitos pelo legista Fortunato Badan Palhares. O mais polêmico afirmava que PC Farias havia sido vítima de um crime passional. A tese, no entanto, fora descartada em outro laudo do Laboratório de Fonética Forense e Processamento de Imagens, do mesmo DML. “O laboratório não teve sua credibilidade arranhada pelo processo dramático que atingiu o departamento”, afirma o foneticista Ricardo Molina de Figueiredo. O problema é que, com a extinção do DML, o laboratório está no limbo. Sem autonomia de atuação, essa ilha de excelência corre o risco de fechar as portas. “O ideal seria criar um núcleo multidisciplinar de perícias”, sugere Molina.
Luiza Villaméa

Cinegrafista Osvaldo Araújo e o coronel Pantoja (destaque)
O primeiro tiro – Uma das imagens capturadas a um minuto e 20 segundos mostra que o batalhão da PM de Marabá se posiciona entre os sem-terra e o agonizante Amâncio. O grupo avança e arremessa paus e pedras na polícia. Num dos segmentos registrados a um minuto e 35 segundos, um policial dispara o revólver. “Essa cena é dificílima de ser visualizada. Só conseguimos chegar a essa conclusão com a imagem em movimento muito lento. Assim, é possível verificar a fumaça que parte da arma em poder do policial”, explica Molina. Dois segundos depois, um tiro é disparado por um sem-terra. “Essa ordem dos disparos, primeiro o da polícia, depois o do sem-terra, agora provada cientificamente, é importantíssima”, afirma o promotor Marco Aurélio Nascimento. Ele explicou que um dos motivos que levaram à absolvição dos oficiais foi o fato de o jurado Sílvio Queirós de Mendonça ter defendido a tese de que os sem-terra atiraram primeiro. A lei brasileira não permite que durante o julgamento os jurados façam nenhum tipo de exposição.
Segundo o promotor, os policiais levaram à Justiça diversas armas, inclusive espingardas, que teriam sido usadas pelos sem-terra no momento do conflito. As imagens agora reveladas deixam tudo claro. Nenhuma espingarda é vista em poder dos sem-terra. A perícia confirma, no entanto, que os manifestantes portavam pelo menos três revólveres. “Depois do conflito, em dois momentos da fita é possível ver revólveres com os sem-terra, mas não se sabe se eles foram disparados”, dizem os peritos.
Depois que os sem-terra rompem o bloqueio da PM e alcançam os companheiros feridos, o cinegrafista registra dezenas de pessoas feridas e muita gritaria. No julgamento, os PMs alegaram que atiraram para o alto, com o objetivo de impedir o avanço dos sem-terra, sem intenção de ferir. As novas imagens, mais uma vez, desmentem essa versão. Muitos foram baleados nas pernas e nos pés, mas num dos quadros gravados aos três minutos e 30 segundos da fita, um rapaz exibe um tiro de raspão no abdome. Aos quatro minutos e 30 segundos e aos cinco minutos e 11 segundos é possível visualizar Júlio César com um ferimento na cabeça. “Os ferimentos indicam que a polícia não atirou apenas para o alto”, contesta Molina. No julgamento, essas últimas cenas poderiam ter sido vistas com clareza, mesmo em um simples videocassete. A Justiça do Pará, no entanto, preferiu acreditar em um laudo preparado pelo polêmico médico-legista Fortunato Badan Palhares, feito a pedido da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Em seu laudo, Badan diz que a maioria dos sem-terra morreu vítima de armas brancas. Como a polícia não usa facas nem estiletes, os jurados entenderam que os sem-terra mataram uns aos outros. Uma conclusão à altura dos laudos anteriores de Palhares, como o de que PC Farias foi vítima de um crime passional.
O depoimento de Maria Abadia não foi considerado, mas a cena ao lado prova que ela estava no conflito
Quando os manifestantes já retornavam para as barracas e a estrada estava liberada, chegou ao local o batalhão da PM de Paraopebas. Os sem-terra correram para o mato, para as barracas e para um barracão de madeira. O cinegrafista também entrou nesse barraco. Nesse momento, ele abre o diafragma da câmera, tentando gravar as cenas no ambiente de pouca luz. Não consegue muita coisa. A imagem fica escura e só se ouvem gritos e tiros.
Execução – Quando a gravação chega aos sete minutos e 42 segundos, o cinegrafista e a repórter Marisa Romão resolvem abandonar o barraco de madeira. Ela grita para os policiais pararem de atirar, avisando que ali só há mulheres e crianças. Araújo corre, mas a câmera continua com o diafragma aberto e tudo o que ele consegue captar é um branco. “Ao digitalizarmos essas imagens, isolando e filtrando algumas cenas, pudemos constatar a existência de um corpo caído de bruços com uma perfuração de arma de fogo nas costas”, afirma o laudo da Unicamp. Segundo Molina, a poça de sangue sob o corpo do rapaz, sem rastros para as laterais, indica que ele foi atingido e morreu ali mesmo. O corpo aparece em uma das cenas obtidas aos sete minutos e 46 segundos de filmagem.
“Isso prova a execução”, enfatiza o promotor Nascimento. “A estrada já estava liberada, os sem-terra tinham corrido para o mato e para as barracas e mesmo assim os policiais atiraram pelas costas e quase à queima roupa.” O cinegrafista concorda. “Não sei o que a Justiça define como execução,
mas esse corpo eu só vi depois que o conflito estava sob controle”, recorda-se Araújo. Ele também recorda que durante a confusão filmou diversos feridos, mas nenhum morto. “Está evidente que a matança aconteceu depois que a missão policial foi cumprida e quando os sem-terra estavam acuados”, afirma o promotor.
Nascimento já avisou que no novo julgamento vai levar para o Tribunal o perito Molina para explicar aos jurados cada uma das novas cenas identificadas por meio da perícia. Molina diz que atenderá à convocação e pretende levar um telão para que todos possam ver e ouvir o que realmente aconteceu na curva do “S”, da PA –150, em Eldorado do Carajás, em 17 de abril de 1996. 
Massacre também no júri
Ed Ferreira/AE
A PM pôs fogo no acampamento para ocultar provas
Quanto vale a vida de dez sem-terra, entre eles uma menina de sete anos morta com um tiro nas costas? Se o critério for o resultado do julgamento do massacre de Corumbiara, ocorrido em Rondônia em 1995, vale muito pouco. Nove dos 12 policiais militares acusados pelas mortes foram absolvidos. E quanto vale a vida de um tenente e de um soldado? Considerando-se o mesmo julgamento como referência, valeu a condenação de dois sem-terra: Cícero Leite Neto e Claudemir Ramos. No 1º Tribunal do Júri de Porto Velho, o promotor Tarcísio Leite de Mattos alegou falta de provas e pediu a absolvição de dois oficiais. Exaltado, chamou os sem-terra de “nazistas” e bradou: “Ou o Brasil acaba com os sem-terra ou eles acabam com o Brasil.” Resultado: os jurados absolveram o capitão José Pachá e o tenente Mauro Flores. Depois dessas declarações, Mattos foi afastado do caso. No seu lugar assumiram Cláudio Harger e Rudson Coutinho. O último julgado foi o coronel José Ventura Pereira, que comandou a desocupação da fazenda Santa Elina, palco do confronto entre 193 policiais e cerca de 600 famílias, que resultou na morte de dez sem-terra e dois PMs. Foi absolvido. Ele era acusado de omissão na morte do sem-terra Sérgio Gomes, retirado por pistoleiros da base da PM e encontrado morto, com três tiros na cabeça, dias depois. O coronel jogou a culpa no major Vitório Mena Mendes, condenado juntamente com os soldados Daniel Furtado e Airton Ramos. A Anistia Internacional ficou indignada com o resultado do julgamento. “O sistema judiciário estadual do Brasil demonstrou mais uma vez sua incapacidade para investigar e processar os responsáveis por casos graves de abuso de direitos humanos”, diz o relatório da Anistia. E mais: “Desde o início, a polícia procurou solapar a investigação da chacina, destruindo provas no local do crime.” Para a Comissão Pastoral da Terra de Porto Velho, “a postura incoerente do Ministério Público levou os jurados a absolver a maioria dos acusados. E a contradição se estabelece a partir do momento que os promotores, mesmo sem provas, pediram a condenação das vítimas da truculência da força policial.” O promotor Coutinho admitiu a precariedade de provas e exemplificou: “A perícia da balística foi feita em Curitiba porque em Rondônia não tinha aparelhagem.” E culpou o governo: “O Ministério Público oficiou o governador pedindo recursos para as investigações, mas não foi atendido”, acusa Coutinho.
Madi Rodrigues